terça-feira, 15 de fevereiro de 2005

Luana e Analu

Olá, amigos viajantes! Tenho aqui meu mais novo conto. Desta vez, resolvi postá-lo de uma vez só, em vez de brincar de "Jack, the Ripper". Ele é diferentemente bizarro em relação ao conto anterior, "O Edifício dos Amores Jamais Vividos", uma vez que este "Luana e Analu" não foi baseado num sonho. Divirtam-se, amigos!!!

Luana e Analu

Elas nunca se viram antes. Cada uma vivendo em partes diferentes do país. Uma em Salvador e outra em São Paulo. Tinham a mesma idade e nasceram no mesmo dia, no mesmo horário, numa tarde de outono, em hospitais de suas cidades. Ambas nascidas de parto normal. Seus pais sofreram e choraram muito por elas, mas também eram felizes porque elas eram as luzes de suas vidas. Já haviam vivido 19 anos, para efeito desta primeira descrição, e jamais tiveram a menor noção uma da outra. No entanto, eram fisicamente iguais. A não ser por um detalhe: a paulistana gostava de pintar os cabelos. Para um narrador onisciente que sou, parece um pouco bobo uma mulher negra clarear os cabelos ao ponto de uma loirice fabricada. Para muitos, soava como uma traição à sua raiz, mas fazia caso disso. Ainda assim, descontando este detalhe, era um portento de mulata. Fazia sucesso em qualquer lugar, os homens a olhavam deslumbrados e com ares sacanas. Ela gostava, embora não soubesse, dizendo que não. Fazia-se secretamente (até de si mesma) mais orgulhosa, mas guardava seu corpo para um jovem namorado que não lhe dava o devido valor. Ele a trocava por sexo fácil (e ela não lhe daria amor antes do casamento, dizia), por um futebolzinho num campo mirrado e irregular do bairro periférico em que viviam ou por uma cervejada com os amigos. Ela trabalhava numa loja de artigos esportivos, mas não se interessava muito por esportes. Seu sonho era conhecer a Bahia, e faria isto assim que tirasse as férias seguintes. Era então o ano de 2005.

A soteropolitana era mais “livre” no que diz respeito ao amor. Gostava dos homens, mas não de se prender a eles. Quando era carnaval, deixava-se solta no mundo e vivia a gozar todos os prazeres possíveis. Não era muito vaidosa, nem precisava. Era naturalmente bela, daquelas belezas de Photoshop que quase não precisam de ajustes. Vivia num bairro próximo ao centro histórico e distribuía sorrisos e dengos para todos os lados. Quase todos os machos das imediações de onde morava a queriam. E a tiveram, na medida do possível. Trabalhava como recepcionista em um escritório de advocacia e era competente. Não gostava muito de artes, em geral, mas sabia dançar como alguém que nascera para a arte. Apesar de tudo parecer muito certo em sua vida, queria conhecer São Paulo. Ouvira sempre coisas monstruosas sobre tal cidade e queria encarar o monstro.

Pois bem, ambas poderiam realizar seus sonhos, mas calma, leitor... ainda não é o momento da realização, se é que haverá. Há mais detalhes a serem relatados e eu quero deixar isto bem claro, pelo menos o mais claro que este narrador onisciente mas um tanto humilde em relação às suas capacidades pode ser. A paulistana Analu e a soteropolitana Luana poderiam ser gêmeas perdidas, e eu poderia contar uma história sobre alguma troca de bebês ou algo similar. Seria fácil, mas não é o caso. Não se trata de um engano na maternidade ou de algum segredo típico de novela de TV. Trata-se apenas de uma coincidência. Ninguém, além deste narrador, sabe da assombrosa semelhança física destas duas. Os anos vão passando e é inverossímil que seus mundos se cruzem, a não ser por força de algum capricho da vida. O que está sendo dito, afinal? Quem narra sabe muito bem o que vai ou não acontecer!

Mas a verdade é que o tempo vai passando... dias, meses, anos. Apenas o narrador fica em seu “ano-base” que é 2005. Embora esta história vá se desenrolar no porvir, tudo será contado como se já tivesse passado. Então, o tempo desta pequena explanação é o suficiente para levá-las a um futuro não muito distante, mas o suficiente para impulsionar Analu e Luana até uma idade mais madura. Ambas tinham 35 anos quando destes fatos. Analu estava casada com o namorado já apresentado neste continho sem valor. Tiveram três filhos bonitos e formavam uma família infeliz. Nossa paulistana trabalhou muito e não mais numa loja de artigos esportivos, desde que juntou dinheiro o suficiente para abrir um modesto porém quase simpático bar, não fossem os costumeiros viciados em cachaça. Trabalhava tanto que jamais viajou, a não ser quando foi com marido e dois filhos então nascidos para o Litoral Norte de São Paulo. Tornou-se religiosa e tudo no mundo sabia a pecado para ela. Enfim, vivia uma vida simples, temperada pelos programas da TV que havia no bar e divulgavam muitos pecados e pouca virtude, mas ainda assim, sentia-se forte e viva, por conta de suas atividades.

Luana, por sua vez, trabalhou no escritório durante um tempo, estudou Direito e fez-se advogada. Seu lado sentimental continuou sendo de desregramento, mas algo a fez ser mais contida. Uma criança, especificamente. Uma criança que ela não amava. Teve um caso relâmpago com um famoso jogador de futebol e o saldo da aventura foi este filho. Continuava amando os homens, menos aquele tiquinho de gente, que passava o tempo a requisitar amor e atenção. Não que ela fosse má mãe, justamente não era uma boa o suficiente. O “filho-prejuízo” (que de tão desimportante nem será citado depois deste parágrafo) impôs certa rédea ao desregramento de Luana. A única coisa da qual ela não abria mão era a possibilidade de viajar, quando as férias do trabalho permitiam. Nunca levava o menino, deixava-o com sua mãe e saía a conhecer o mundo. Curiosamente, acabou esquecendo o sonho de São Paulo e nunca tinha ido à terra da garoa até então. Ademais, sempre se via impelida a ir a outro lugar. Conheceu Inglaterra, França e Itália em algumas ocasiões, mas São Paulo, jamais.

A paridade física entre as duas manteve-se a mesma, e se acentuou quando Analu deixou de pintar os cabelos. Apenas uma era fogosa, digamos assim; e a outra era recatada e infeliz. Ah... mas porque estou lhe contando este conto tão despropositado? Você provavelmente tem mais o que fazer e essa história tão pobre e tão vazia de expectativas óbvias não vai levá-lo a lugar algum. Basta dizer que, se avançar o porvir desta história, pode-se afirmar seguramente que elas não se encontraram, embora Luana tenha enfim ido à São Paulo, quando já era uma senhora de 68 anos e já não atraía mais os machos como antes. A realização deste sonho esquecido foi para ela uma compensação, até certo ponto. Nesta altura, os filhos de Analu já haviam chorado seu falecimento (ela soube de seu câncer no colo do útero aos 45 e não havia mais muito o que fazer, nem as técnicas mais avançadas poderiam salvá-la) e seu marido provavelmente já tinha se tornado recordista mundial no consumo de pingas ruins, algo digno de Guiness. Não duvide, caro leitor.

Aqui, o tempo retrocede. Porque se faz necessário, ou porque é absolutamente desnecessário. Não sei. Mas ambas viveram um tempo marcado por uma revelação que mudou a forma de a humanidade encarar sua existência. Não que elas se importassem absolutamente. Não mesmo... o fato, que foi transmitido pela TV em rede mundial, não fez com que Analu fosse mais infeliz do que já era ou renegasse seu Deus. Tampouco fez com que Luana trepasse mais ou menos ou que ela se tornasse melhor ou pior advogada. Elas não se importaram com nada e se, no momento em que o presidente dos EUA e o papa se juntaram para o pronunciamento, deixaram cair os queixos, foi mais por um choque momentâneo facilmente superado do que por sensibilidade e preocupação com os destinos da humanidade. Elas viviam suas vidinhas e isto bastava.

Naqueles dias, elas contavam 38 incompletos outonos. Analu em seu bar espantando os bêbados que teimavam, por questões de futebol, em importunar um cliente que apenas queria comprar cigarros. Luana na cobertura do amante nova-iorquino em Paris, depois de uma tarde ardente de delícias que já anunciava sua partida para dar lugar a uma noite suave e de prometidos prazeres gastronômicos. Mas tudo foi interrompido quando chegou a hora em que se juntaram os líderes religiosos, econômicos e políticos para anunciar a terrível notícia. Os dois mais significativos foram encarregados de ser os porta-vozes da desgraça. O papa dizia que era preciso confiar mais do que nunca em Deus, o presidente norte-americano conclamou todos os exércitos do mundo a se unirem contra a invasão.

Alarme falso... os alienígenas nunca atacaram a Terra, e os rumores que eles conheceram por causa de uma mensagem decifrada por um grupo de astrônomos de grande crédito fizeram com que eles revelassem que sim, havia vida fora do planeta Terra, e os aliens ameaçavam atacar nosso minguado lar.

O titã Cronos, que a tudo devora, sabe muito bem que, quando os alienígenas chegaram, a Terra já se havia desfeito em trevas e não havia mais nada a ser conquistado. Resta ao titã consumir os fatos... os alienígenas e sua nave altaneira; os líderes mundiais; as “gêmeas não-irmãs” que jamais se encontraram e toda sua prole, filhos, netos, bisnetos; e, finalmente, este narrador onisciente que narra histórias com tão pouco bom senso.

Mas, enquanto vivemos, devemos viver de verdade, sem pensar muito no tempo e em invasões alienígenas. No mais, desculpe-me leitor, por tê-lo feito perder seu tempo e por esta tentativa de lição de moral sobre viver, tão mal-disfarçada de final.


Bom, isto é tudo! Desfaçam as malas e se acomodem em algum hotel. Mas preparem-se, que a viagem prosseguirá em breve. Beijos e abraços!!!