segunda-feira, 26 de maio de 2008

Deboche

O cemitério, a comédia humana, o terror, tudo o que nos faz tremer. E, mais uma vez, eu só tenho a poesia. Que é pra mim, pra vocês, pra quem quiser ler, amar, rasgar, deletar, foder, chorar. Vamos lá:
Deboche

cá estamos novamente
mãos separadas,
rosto para baixo,
vergonha na cara...
quem é que não tem um pouco?

cada um de nós se sente o mais ferido
e sempre nos falta um braço,
uma perna,
um baço,
um coração.

habitamos mais uma vez
este grande cemitério de carícias
que nunca foram;
a escola da fofoca,
bullshit
e pequenez humana.

tem gente que vem,
tem gente que vai...
este filme eu já vi
e você também.

estávamos juntos no cinema
reclamando o dinheiro do ingresso
porque o negócio todo é muito ruim.

pode crer, é de amargar,
mas ainda prefiro jiló
aos testes tontos
para saber se eu seria
o namorado ideal.

unidos perderíamos
a noção do perigo
a noção da nação
mas este é o lance:
perder o pudor,
já que somos tão pouco
perante a bandeira.
ou $omo$ tão pouco
perante o poder...

fazem piadas de portugueses,
de argentinos,
de brasileiros,
de tanta gente
que já perdemos graça.

é só pirraça
de criança.
eu já não sei,
ninguém mais sabe.
baixamos os olhos
e esquecemos da santa ignorância, morcegão!

sugam o sangue,
contam mentiras.
é tanto milagre naquela igreja
que deviam fechar os hospitais.
mas é a fé, só a fé que salva
e a fé de um é do tamanho do extrato bancário.


já me disseram pra crer no absurdo,
pra crer no patrão
e no perdão divino.

até na sociedade alternativa...

então você
parte descontente,
procura o ópio,
o futebol,
a novela,
a erva,
o pó.

já não tenho mais saco
pra ser assim.
vamos embora sorrindo e ignorantes.
vamos chorando de tanta dor de dentes
ou dor de ser gente.
esta sabemos

que existe.

vamos invadir o senado,
o gabinete do homem,
preservar o mundo
de tanta pose,
desordem...
mentira!

vamos ao banco
descontar o cheque
da subserviência.

se ao menos houvesse um piano
eu faria da queixa
uma canção,
mas esqueci as notas,
perdi o tempo
e me perdi
no tema.
mas eu teimo
em ser quem sou:
e sou poeta -
alguma coisa,
coisa alguma.

você já sabe...
e ri.
ri da minha desgraça,
da sua desgraça.
é só o que resta:
é só deboche...
o deboche
é só...

perdão,
eu não respeito a sua dor.
eu também não tenho carinho.

mas quem se importa
quando todo mundo passa por cima
pra sobreviver?

Beijos e abraços, povo!

NA MINHA VITROLA: BEIRUT - La Banlieu.

sábado, 24 de maio de 2008

O mundo é uma mesa de bar (é?)

Antevendo o hoje, as conversas semelhantes... tantas assim. No passado, no futuro. E o que restará disso tudo, não faço ideia.

O Mundo É uma Mesa de Bar (É?)

Fim de tarde. A imponência das construções e dos grandes comércios do centro da cidade são manchadas por um belo pôr-do-sol, vermelho e muito típico da época do ano. Os poetas, fugitivos da rotina, ou que tentam, estão ali, naquele boteco de sempre, falando as mesmas coisas de sempre, enquanto a cerveja sempre esquenta, no mesmo ritmo em que eles buscam fazer com que o líquido desapareça do copo. É preciso prestar atenção ao fenômeno do diálogo que se dá na mesinha ou não. Em todo caso, a prosa está lá.

- Você vê, tudo é muito rápido, João. As pessoas estão sempre fazendo mil coisas ao mesmo tempo pra tentar salvar o couro. Agora mesmo, veja como bufa aquela mulher na calçada . Não é nada elegante, ela é nova e parece uma puta velha, ranzinza. Poderia ser outra pessoa. Qualquer um poderia ser qualquer pessoa...

Zico para e bebe. Respira fundo. Tenta sacralizar o momento, erguendo o copo à meia altura. Em seguida, conclui:

- ... você sabe, né?

João quase se culpa. Não está à vontade. Mas isto é tão comum... ele nunca está... poderia-se dizer que há um constrangimento diante da inutilidade de tantas coisas. Um pensamento até-a-vida-é-pouco-útil passeia em sua mente, quando se manifesta.

- Claro, poderíamos ser outras pessoas e não vagabundos nessa mesa de boteco bebendo, bebendo e falando e nada fazendo. No entanto, temos de correr demais, Zico. E a cerveja vai esquentando.

- Ah, triste dever o nosso. Temos de consumir todo o líquido gelado e dourado antes que o mundo acabe. Ou, pelo menos, antes que este boteco feche... eh eh eh! Antes era o sol sobre nossas cabeças. Agora já vai anoitecendo e... a necessidade de caminhar para sei lá o quê... você sabe por que aquele homem atravessou a rua com o sinal fechado? Ele nem se importa se aparecer um carro à toda...

O ritual se repete, copo erguido, ideia que se conclui. O amigo de nome de ex-jogador pausa, como se tivesse acabado de colocar a bola na marca de cal e olhasse o goleiro antes de arrematar a gol, numa penalidade máxima.

- ... na verdade, ele nem pensa na morte. Mas na verdade, ainda, me cago pra isso.

Gol marcado, João, o pobre-diabo, só pode concordar.

-Ah, sim. Ele nem pensa em si mesmo. Um dia pouco feliz no trabalho... sei lá. É novo, né? Corre pra faculdade. Quantas histórias assim conhecemos e desconhecemos?

- Bom, essa etapa, ambos vencemos. Mas estamos sempre vencendo etapas, cumprindo cronogramas... e pra quê? Nesta cidade, o goal é o progresso, mas ninguém está vivendo melhor e absolutamente confortável. Dizem que é o êxodo. Eu digo que é a quimera. No fim, dá no mesmo.

- Somos infelizes na tentativa de sermos felizes. Outro dia escrevi algo sobre isso...

Morena deslumbrante passa por trás deles, ambos torcem os pescoços. Nada tão deslumbrante – há o que seja tão belo ao olhar e há o que seja perigoso ou frustrante ao toque. João pensa sem parar se-ela-estivesse-aqui. Aquela coisa... como é mesmo o nome? Mal de amor! Ainda há quem insista. Zico, percebendo a coisa, quebra a tristeza encantada do amigo.

- Boa, hein?

- Boa, bastante boa. Mais que boa...

- Tenta a sorte, ora!

- Não hoje...

- Viadinho!

- Você é quem diz, seu merda! Do jeito que estou hoje, não sou boa companhia nem pra minha sombra.

- Ô, puto, tô pensando em pedir algum troço pra comer. Acompanha?

- Não, não... nem tô a fim... fico na breja mesmo.

- Tá. Então... já reparou que são raros os momentos em que uma pessoa ocupada pode se dar o direito de sorrir, de verdade? Não aquele sorriso contratual, a simpatia calculada. Falo do prazer de ser, do prazer de estar.

- Utopia. Quem sabe?

- Pois eu digo que não é utopia, mas é cada vez mais raro.

- Agora mesmo... é...

Uma ideia... raios, como João a deixa escapar... atrapalhando-se na própria língua, João quase pede pelo atropelo. Zico parece adivinhar e diz:

- Agora mesmo estamos aqui, como se fosse permitido. E é. Porque queremos. Mas quem somos senão uns vagabundos, privilegiados, canalhas, desesperados?

- É. Somos mesmo uns canalhas desesperados... eh eh eh! Precisamos disso, não? Desta cerveja que esquenta, da espera por algo que aconteça...

- Sim, não gostamos da rotina. Na verdade, ninguém gosta. Alguns têm coragem de dar menos importância a isto tudo, mas pagam algum preço, não pagam?

- Zico, é disso que eu queria falar... esperamos que mais gente junte-se a nós. Que a “tribo” esteja unida pelo luxo de nada fazer que não seja observar.

- Não, não é isso. O outro não importa, a não ser como objeto de observação. Particularmente, o que eu iria querer com o outro ali que não é capaz de sentir o gosto daquilo que come?

- Tem certeza que é isso?

- O quê?

- Que as pessoas são tão incapazes de sentir o gosto das coisas?

- Você pode?

- Acho que sim.

- Aí você se engana. Nem mesmo nós escapamos. Eu falei que somos desesperados... estamos o tempo todo tentando nos diferenciar, ser aqueles que sentem o aroma do café da esquina ou o gosto dessa cerveja...

- Acabou.

- É só chamar o carinha ali que ele trás outra. Peraí, que eu já fiz o sinal e ele já vem.

O boteco, que estava vazio quando chegaram, já está um tanto cheio, o balconista anota pedidos, a cerveja tarda a chegar, mas os amigos aguardam, gastando todo pensamento.

- Você acha mesmo que somos uns desesperados?

- Claro! Ou não estaríamos aqui, discutindo isto tudo. Iríamos viver, de alguma forma. Mas... afinal, o que é viver?

- Isto aqui é pouquinho de viver, Zico. Ou é mentira minha?

- Você pode ter essa cara de traveco brasileiro fazendo a festa em algum lugar do Mediterrâneo, mas mentiroso você não é. Só que... viver é um pouco mais que isso. Você valoriza tudo o que o cerca, todo o tempo?

- ‘ta-que-o-pariu... Dá pra conversar um instante sem me zoar, vaca velha?

- Claro que não.

Nisso, chega a garrafa cheia. Expansivo e todo risos, à visão da garrafa e divertindo-se com a estranheza de João, Zico cumprimenta o velho cara do balcão.

- Olha nossa breja chegando! – vira-se para o homem do bar:

- Ô, Zé... me diz rapidinho... você espera o que da vida?

- Vixe... rapaz, nem sei...

- Tá vendo?

- É!

O Zé se afasta, para depois voltar e dizer aos amigos que já tem seus copos cheios:

- Além de uma vagabunda bem gostosa, quero que o Palmeiras ganhe o clássico no domingo.

Bom, isso é tudo por hoje, pessoal! Beijos e abraços!

NA MINHA VITROLA: EVAN RACHEL WOOD - Hold Me Tight > MOONSHAKE - Sweetheart > THE ROLLING STONES - Casino Boogie > JUAN STEWART - Domaj > MICHAEL GIACCHINO - World's Worst Beach Party.

quarta-feira, 21 de maio de 2008

II Trupe de Choque - Núcleo de Pesquisas

Desculpem, pessoas queridas, por não estar respondendo aos comentários de vocês. Minhas respostas virão em breve. Mas, por enquanto, deixo a vocês um recado que pode ser interessante a alguns.
Cabaret, trabalho de Patricia Belli (Nicarágua).

O grupo do qual faz parte minha amiga Sansorai está para iniciar seis núcleos de estudos de teatro - em convergência com diversas modalidades de expressão artística/tecnológica contemporânea. A saber:Os encontros se darão no Hospital Psiquiátrico Pinel, a partir de 29 de maio. Para saberem mais, leiam aqui.

Beijos e abraços, pessoal!

NA MINHA VITROLA: LUIZ TATIT - A Companheira.

sábado, 17 de maio de 2008

Para Zelia e Jorge

Zelia, você faz falta, assim como o Jorge!

Ou não... porque eternos, vocês já são!

Num casarão antigo, situado na Alameda Santos número 8, nasci, cresci e passei parte de minha adolescência.

Ernesto Gattai, meu pai, alugara a casa por volta de 1910, casa espaçosa, porém desprovida de conforto. Teve muita sorte de encontrá-la, era exatamente o que procurava: residência ampla para a família em crescimento e, o mais importante, o fundamental, o que sobretudo lhe convinha era o enorme barracão ao lado, uma velha cocheira, ligada à casa, com entrada para duas ruas: Alameda Santos e Rua da Consolação. Ali instalaria sua primeira oficina mecânica. Impossível melhor localização!

Para quem vem do centro da cidade, a Alameda Santos é a primeira rua paralela à Avenida Paulista, onde residiam, na época, os ricaços, os graúdos, na maioria novos-ricos.

Da Praça Olavo Bilac até o Largo do Paraíso, era aquele desparrame de ostentação! Palacetes rodeados de parques e jardins, construídos, em geral, de acordo com a nacionalidade do proprietário: os de estilo mourisco, em sua maioria, pertenciam a árabes, claro! Os de varandas de altas colunas, que imitavam os "palázzos" romanos antigos, denunciavam — logicamente — moradores italianos. Não era, pois, difícil, pela fachada da casa, identificar a nacionalidade do dono.

O proprietário do imóvel que meu pai alugou era um velho italiano, do Sul da Itália, Rocco Andretta, conhecido por seu Roque e ainda, para os mais íntimos, por tzi Ró (tio Roque). Dono de uma frota de carroças e burros para transportes em geral, fora intimado pela Prefeitura a retirar seus animais dali; aquele bairro tornava-se elegante, já não comportava cocheiras e moscas. O velho Rocco fizera imposições ao candidato: reforma e limpeza do barracão, pinturas e consertos da casa por conta do inquilino.

Dona Angelina, minha mãe, assustou-se: gastariam muito dinheiro, um verdadeiro absurdo! Onde já se vira uma coisa daquelas? Velho explorador! Por que o marido não comprava um terreno em vez de gastar as magras economias em reformas de casa alheia? E o aluguel? Uma exorbitância! Como arranjar tanto dinheiro todos os meses? Onde? Como? Mas ela sabia que não adiantava discutir com o marido. Considerava-o teimoso e atrevido.

O vocabulário de dona Angelina era reduzido — tanto em português como em italiano, sua língua natal —, não sabia expressar-se corretamente; por isso deixava de empregar, muitas vezes, a palavra justa, adequada para cada situação. Usava o termo "atrevimento" para tudo: coragem, audácia, heroísmo, destemor, obstinação, irresponsabilidade e' atrevimento mesmo. Somente conhecendo-a bem se poderia interpretar seu pensamento, saber de sua intenção, se elogiava ou ofendia. No caso da reforma em casa alheia, não havia a menor dúvida, ela queria mesmo desabafar, chamar o marido de irresponsável: "...um atrevido é o que ele é!" Disse e repetiu.

Trecho do livro Anarquistas, Graças a Deus, de Zelia Gattai, lançado em 1979.

quinta-feira, 15 de maio de 2008

Sim, trabalho ainda pode ser prazer

Bom, há uns posts atrás, eu tinha falado que maio seria bom pra mim, não é?

Pois é!

Comecei hoje um freela muito bacana, com duração aproximada de um mês. Claro, a possibilidade de eu abrir novas portas existe e isso é muito bom!

Mais do que tudo, sinto o gosto que julgava não poder mais sentir: o gosto de trabalhar com prazer! Como é bom poder trabalhar em algo em que posso acreditar!

Além disso, tive a surpresa, já que o mundo é tão pequeno, de encontrar um camarada, um dos caras bacanas, que trabalhou comigo, por um pouco de tempo, no emprego anterior.

Não digo que nunca voltaria a trabalhar em determinada área onde estive atuando nos últimos anos, mas voltar ao meio editorial, da forma como voltei, pelo menos hoje, foi uma grande alegria. E acredito que as coisas se darão de forma positiva daqui pra frente.

Enfim... chega de depressão, de falta de confiança, de pensar "o que estou fazendo neste lugar?". Agora é só dar o melhor de mim e colher os frutos!

Beijos e abraços, pessoal!

NA MINHA VITROLA: GLEN HANSARD - When Your Mind's Made Up.

terça-feira, 13 de maio de 2008

... e caminhamos, das estrelas, ao brilho

Olá, pessoal. Volto à poesia, porque a ela sempre se há de voltar. Lamentável que a maioria não o perceba, mas isto é outra história. Vamos lá:
... e Caminhamos, das Estrelas, ao Brilho *

a angústia que há em cada canto
da terra não pode ser traduzida
em palavras.

seria pobre o suficiente.

há um mundo em cores lá fora
que não é para todos.
nem será.
quem tem garante o seu, sem olhar ao lado
ou para trás.
conquista-se ou não. com sangue
ou sem.

há um mundo. cheio de feridas.
há os que
machucam e os que cutucam
a própria carne já há tanto
exposta.

eu, que já fui ferido, no entanto,
não sou mais.
forço a visão e busco enxergar
ao longe.

há um pântano infindável.

enxergo e, às vezes, é tão simples...
finjo que não.
mas não darei
a tudo isto toda a importância.

tenho mais sorte
porque o pântano, apesar de infindável,
não é só o que há.

enxergo mais longe,
recrio o mundo
ou
tenho um novo
na imaginação. e as mãos o farão sólido.

uma viagem em curso.
espaço para bagagem, já há
muito. e cabe mais.

um tanto de alegria, mas que não seja tanta
que entorpeça.
outro tanto de angústia,
mas que não exceda
que paralize.

mais um tanto de tons intermediários
e a crença de que o caminho
seguirá sendo traçado.

há tanto de deleite em cada vida
que não pode ser traduzido -
só a Poesia pode.

* O último verso do
Canto XXXIV do Inferno, em A Divina Comédia, de Dante Alighieri.

Beijos e abraços, pessoal!

NA MINHA VITROLA: HABIB KOITE & BAMADA - Sambara.

domingo, 11 de maio de 2008

Duas coisas. A segunda... é o amor!


Amo você! Apesar de tudo!

Beijos e abraços, pessoal! Beijos e abraços, mãe!

Duas coisas. A primeira: as últimas palavras sobre alguém

Nesta semana fiquei sabendo.

Sabe aquelas personagens de infância e juventude que você encontra cá ou lá, que não influem diretamente na vida, mas que estão lá, de certa forma, uma parte da composição do quadro? Era o folclore, a magia, o Zé Ninguém que era alguém. Uma personagem do bairro. Pois bem...

Assim era aquele cara que eu sempre via na rua, o catador de papelão, figura ilustre. Às vezes bêbado demais pra cumprimentar, às vezes com toda a boa vontade do mundo. De vez em quando estava ali, no boteco onde às vezes compro cigarros, tomando sua branquinha. Santista. Eu sacaneava. Pra mim, era torcedor de qualquer time, menos do Santos. Então era normal eu cumprimentá-lo:

- Faaaaaala, bugrino!

ou

E aêêêêêê, colorado!

ou

Dá-lhe, Ari! Como tá o seu mengão?

Ele, que parecia o "seu" Madruga, ficava bravo. Era mesmo engraçado. Uma vez, eu contando histórias absurdas pros amigos Carlos e Roberto, na frente do prédio em que eles moravam, de um jeito muito Woody Allen - eu queria ser Woody Allen, embora esteja satisfeito em ser eu mesmo. Ari morava no mesmo prédio em que os caras moravam. Quando ele chegava da rua e ficava ali proseando um pouco conosco, eu caprichava ainda mais no absurdo de tudo o que inventava.

Era bom.

Foi o Carlos quem contou. Também ficou sabendo um pouco depois, já que não mora mais naquele prédio.

Ari tinha câncer. Eu nem sabia.

Adeus, cruzeirense!
Homenagem póstuma e tosca... eh eh eh!

sábado, 3 de maio de 2008

O joelho de Claire

Ai, ai... feriadão, tempo de agitar, pra uns. Talvez pra mim. Mas nesta sexta chuvosa não havia o que fazer. Ou havia, mas era mais cômodo estar em casa, com bons filmes ou bons livros. Resultado: procurei alguns títulos em minha humilde videoteca e me deparei com uns franceses falando demais... então resolvi que seria a hora de prestar atenção ao que esse tal de Rohmer, um dos maestros da Nouvelle Vague, tinha a dizer. Então, vamos lá?

O Joelho de Claire
Eric Rohmer - França - 1970

Vou tentar não me estender muito sobre o filme, pois o diálogo entre os amigos Jerôme e Aurore será suficiente. Apenas cuidarei de dar as informações preliminares.

Ele, um diplomata, com casamento marcado, um homem culto e com idéias muito próprias sobre o amor. Ela, uma escritora que usa Jerôme como um personagem de uma futura história, um jogo que ele aceita de bom grado.

O lugar é o lago de Annecy, leste da França, onde ele tem uma propriedade que pretende vender. Aurore passa férias em uma casa de família neste mesmo lago. É no amplo jardim desta casa que tem lugar a conversa abaixo, a respeito do jogo que, a princípio, envolvia uma situação amorosa entre Jerôme e a adolescente Laura, filha da dona da casa onde estão. No entanto, tudo muda quando ele conhece outra jovem, Claire, meia-irmã de Laura.

Agora saio de cena e permito que leiam. Antes, apenas advirto que os espaços em brancos representam pausas que ora existem no filme, ora foram manipuladas por mim de forma a tentar deixar fluir o texto mais... literariamente, talvez.

Jerôme Sabe...
Aurore
O quê?
Jerôme Não, nada...

Jerôme O engraçado é que não é mais você quem forja o romance; sou eu. Tenho uma idéia. Mas receio que minhas idéias...
Aurore Não, diga.
Jerôme Não... precisa adivinhar. Trata-se de uma idéia, não de um fato vivido.

Jerôme Levei meu papel de cobaia tão a sério que fui mais longe. Colocando-me na pele do personagem, julguei-me capaz de sentir algo que não é bem o que sinto. Aliás, não sinto nada. Saiba que deixei de correr atrás de mulher. Qualquer uma. Verdade, adulta ou adolescente. Enfim, eu, pessoalmente.

Jerôme Já falei demais, não? Não percebe?
Aurore Quer dizer que pôs o ponto final. Mas não para o seu personagem, espero. Ele prolonga a experiência.
Jerôme Não, não! Falava de mim. O personagem também pôs, ao menos nessa experiência.
Aurore Então acabou tudo?
Jerôme Nesse caso, sim. Mas...
Aurore ''Mas'' o quê?
Jerôme Claro, não vejo como você poderia adivinhar algo... é que é uma idéia pura, da minha cabeça.

Jerôme Na verdade, não é bem uma idéia pura. Laura desconfiou, tenho certeza. O problema é que, enquanto falo... dou à coisa uma importância que ela não tem.

Jerôme Seria divertido você adivinhar. Mas não vai adivinhar nunca, então eu conto: com a Laura, acabou mesmo.
Aurore Sim. E daí?
Jerôme Acabou com a Laura.
Aurore Claire, por exemplo! Não me diga que ela também...
Jerôme Não. É só uma idéia. Não de que ela esteja apaixonada, mas de que me interesso por ela.
Aurore Um clássico: ela ama outro.
Jerôme Mas, se ela não me interessasse, isso não me afetaria em nada. Digamos que ela me perturba. Ela perturba meu personagem e um pouco a mim.

Jerôme Nem valeria a pena mencionar se você não se interessasse.

Aurore Ela o perturba... como? Pelo corpo?
Jerôme Sim. Ela me perturba fisicamente, porque é só o que eu conheço. Nunca conversamos realmente. Teria dificuldade de falar com ela.
Aurore Ela intimida você.
Jerôme Sinto fragilidade diante de muIheres assim. Você entende?
Aurore Tive essa sensação diante de alguns rapazes muito bonitos. É gozado você confessar timidez.
Jerôme Mas sou muito tímido. Sempre me dispensaram do primeiro passo. Nunca tentei conquistar uma mulher que já não fosse favorável a mim.
Aurore E essa agora?
Jerôme Essa... é estranho. Provoca em mim um desejo certo, mas sem objetivo. E, por isso mesmo, mais forte. Puro desejo. Desejo de nada.

Jerôme Não quero fazer nada, mas sentir esse desejo me incomoda. Pensava não achar mais nenhuma mulher desejável. E não quero nada com ela, nem se ela se atirasse nos meus braços.
Aurore Ciúme?
Jerôme Não, não. Mesmo sem querer nada com ela, fico achando que tenho certo direito sobre ela. Um direito que nasce da força do meu desejo. Algo que senti há muito tempo e agora volto a sentir intensamente.

Jerôme A agitação que ela provoca em mim... me dá um certo direito sobre ela.

Jerôme Sabe, estou convencido de merecê-la mais que qualquer outro. Ontem, por exemplo, no tênis, observava os namorados e pensava que toda mulher tem um ponto vulnerável. Para umas, é onde nasce o pescoço, a cintura, as mãos; para Claire, naquela posição, naquela luz, era o joelho. Foi o pólo magnético do meu desejo. Nesse ponto preciso, se pudesse seguir esse desejo, ignorando o resto, teria posto a mão. E foi ali que o namorado pôs a dele, de forma inocente e bobinha. Essa mão era sobretudo burra, e isso me chocava.
Aurore Fácil! Ponha a mão no joelho dela. Está feito o exorcismo.
Jerôme Isso é o mais difícil. Uma carícia deve ser consentida. Seria mais fácil seduzi-la.

Em contraposição a tanta verborragia, saio de fininho, sem nada mais contar. Beijos e abraços, pessoal!

Oh, oh... estava esquecendo de deixar um clipezinho do filme. Pena que não há legendas, mas dá pra ter mais uma idéia, creio.



NA MINHA VITROLA: LEGIÃO URBANA - L'Avventura > ELLIOTT SMITH - Cupid's Trick > Coming Up Roses > ZECA BALEIRO - Musak > RADIOHEAD - Down Is the New Up.