sábado, 23 de abril de 2011

A casca

Poema sobre um homem, duas épocas e locais distintos e um processo de despersonalização.


A Casca

há tempos para trás ficara
o acanhamento das ruas,
os espaços gramados
e os sorrisos da gente simples
do lugar onde nasceu.
memória em branco e preto guardada
como filme ou
sonho.

tudo se tornara concreto,
incluso o tempo,
que passa lento
na larga avenida engarrafada.
nos intervalos, fez parceria
e família:
às 7, levar as crianças;
às 8, trabalho
e toda rotina
cinzenta como a parede do edifício no qual costuma estar,
segunda a sexta,
para aquietar-se escondido.
Quase impossível adivinhá-lo a uma janela
fechada perto das nuvens.

na semana,
comprometia-se
com tarefas,
fez progresso material
e alguns poucos conhecidos
cumprimentavam-no quando passava
apressado
para almoçar em qualquer local.

finais de semana em centros de compras
para alegrar esposa; cinema e pipoca para as crianças.
finais de semana na igreja
e no sofá da sala.
vez por outra,
torceu para a seleção e
tinha a camisa de um dos grandes da capital.
era melhor não usá-la em dias de clássico...

voltava semana seguinte
reproduzindo opinião,
votando na direita ou na esquerda
sem muito pesar nem pensar.
gabava-se por dentro ser alguém entre ninguéns.
dizia-se contra o aborto
e a favor da cerveja na mesa do boteco
após o expediente.

nunca mais voltara à origem...
até então.

hoje a estrada
e a visão de tudo o que conhecera
preenche seu olhar.

avança o ônibus país adentro
e em si tudo revive:
peladas animadas
em acanhadas ruas,
os espaços entre gramas
em que primeiramente caminhou
de mãos dadas
com uma menina de sorriso simples.

agora
nada mais os separa:
homem e lugar.

tantos anos mais velho...
muitos saíram,
como ele saiu.
alguns foram para longe,
para um lugar de onde
nunca voltarão.

outros permanecem os mesmos
assim como árvores,
bancos de praça
e a velha receita de torta de milho da avó,
atualmente reproduzida por uma prima.
igualzinha, igualzinha...

deparou-se com
crianças que nunca conheceu,

casos e piadas dos quais não se recordou
e o sorriso envelhecido que se tornara amargo.
Era o dele
frente a alguém que nem de longe lembrava a namorada
dos catorze anos.

não é o mesmo.
precisa voltar ao concreto,
compromissos
família e
sofá da casa.
não há mais peladas
e a memória se revela enganadora.

nada mais sente.

escolhas separam
homem e lugar.

Ainda bem que nem sempre é assim.

Beijos e abraços, pessoal!

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2 comentários:

Schey Avila disse...

Como sempre, maravilhoso !!!
Parabéns amigo!!

greg disse...

bom meu camaradinha......vc sabe que sou fã de tudo que vc escreve, principalmente poemas......
nesse vc soube juntar toda dor da saudade e a vontade de reviver.....
me vejo um pouquinho em cada coisa que vc escreve.....
serei sempre seu fã!