terça-feira, 27 de junho de 2006

Bicho

Humm... fazia tempo que eu não escrevia um conto. E eu tinha tão pouco sono e tantas idéias. Enfim... aqui vai o resultado. Confiram!

Bicho

Era uma pessoa. Era?

Embora os fatos vão ganhar em claridade à medida que este relato progredir, vamos, por ora, deixar a coisa assim, obscura. Porque era uma pessoa obscura. Mesmo de perto, era embaraçoso vê-lo. E digo “vê-lo” por convenção, porque ninguém conseguia saber se era homem ou mulher. Tinha uma voz, claro, mas isso tampouco ajudava. Era estranho, e isso afugentava as pessoas da pequena cidade. Nós o chamávamos de Bicho.

Tinha ambições. Tinha que ter. Eu queria que tivesse. Eu ficava, na minha pequenez, observando de longe. Bicho queria alguma coisa. Minha falecida mãe gritava "entra pra dentro, moleque" sempre que “aquilo” estava por perto. Porque era tão obediente, eu não me atrevia a ir contra o que dizia minha mãe. As pessoas, em geral, apenas olhavam-no de soslaio, mas eu... eu me fascinava observando-o e sabia: Bicho queria alguma coisa.

Será que pensava em coisas como sucesso, poder, dinheiro, a admiração dos outros? Nunca vou saber, mas ainda hoje, quando todas as ilusões que eu tinha estão perdidas, prefiro pensar que sim. Senão, o que vou escrever aqui?

A cidade em que cresci era pequena. E seu olhar baixo – “aquilo” nunca dirigia o olhar a alguém – devia ter um ódio tão grande quanto o miúdo daquele lugar. Nunca se soube se Bicho teve amigos. Ou irmãos. Ou se um dia teve amor. Mas... como apareceu ali? Velhas estórias diziam que viera do mato. Eu ainda não existia. Para mim, foi como se Bicho sempre existisse, então.

Não se entretinha como nada e apenas saía de seu refúgio para garantir o necessário para sobreviver. Como conseguia recursos para a farinha, eu nunca soube. Ele só comia farinha. E se calava nas sombras. Quis pensar que Bicho não tinha coragem para fazer o que deveria ser feito para alcançar seus desejos.

Era um ser. Era? Tinha de ser, porque é incrível que alguém como Bicho possa ser sem querer.

Eu disse, ele só comia farinha e se calava. E causava medo. Por isso, os rumores das pessoas existiam. Ah... a maledicência popular tinha ali um prato saboroso demais para ser recusado. Diziam que violava defuntos, que comia criancinhas do meu tamanho... “Credo em cruz! Olha que olhar assustado aquele bicho tem!”.

Por que foi parar ali, naquela cidade sem lugar? Aposto que queria estar longe dali. Mas por que não foi embora com seus trapos e não tentou ser gente de verdade? Porque era gente, eu não podia estar enganado.

Eu mesmo queria sair dali quando crescesse. Ir para um lugar melhor, com pessoas melhores. Foi o que fiz, até porque precisei, quando completei 18 anos, mamãe partira e meus irmãos tomaram um rumo diferente do outro.

Descobri, claro, que não havia lugar melhor, nem pessoas melhores. Não há garantias contra a decadência e a mediocridade em qualquer parte. Enfim, todos sabemos que o mundo não é bem como um sonho em que as pessoas são gentis, sensíveis e amáveis. Eu tinha a utopia em minha mente, era um cara que enfrentava tudo e queria tudo, mas não demorou a eu mesmo ser vítima dos maus costumes das pessoas da cidade grande. Atribuíram-me tantos erros, tanta mentira, criaram-me tantos obstáculos. E eu só queria algo maior e que não é tão fácil de definir, menos ainda de encontrar. Ainda assim, entre uma queda e outra, mantive-me quase intacto. Tive até família, por um tempo. Hoje, vivo sozinho. Não faz mal, já me acostumei.

Pensando bem, posso entender um pouco aquela criatura tão estranha aos olhos habituados à rotina e tão somente a isto habituados. Entendo que sua ambição era inútil, que ele se via como um bicho e como Bicho viveria. Não me conformo, mas conformo.

O tempo é implacável, mas aqui estou eu. Cabelos branquearam. A voz enrouqueceu. Nunca mais voltei à velha pequena cidade. Mas um dia, um daqueles que crescera comigo apareceu em minha casa. Foi pegando dicas ali, lá, acolá e finalmente chegou aqui.

Conversa vai, conversa vem. Entre um almoço, um jogo de futebol, uma ida ao cinema e a rotina de um fim de semana, fiquei sabendo de tudo sobre o antigo lugar. Pessoas morreram, outros casaram, crianças nasceram, mais outros saíram dali, como eu. Mais nada, além disso, saiu do lugar.

Naturalmente, perguntei sobre Bicho. E agora lhes conto o que eu soube por meu amigo de infância.

Volto a dizer: Não me conformava, mas conformava. Creio que Bicho não era forte o bastante. Tampouco se deu conta de que o passo bastava para ir aonde deveria ir – se é que queria ir. Então um dia não passou muito bem e seus urros eram assustadores. Quiseram matar Bicho, mas algumas almas piedosas e cristãs o levaram ao hospital da cidade vizinha, que o recebeu de portas abertas e certa má-vontade. Afinal de contas, descobriu-se, Bicho era um homem. Não se sabia o nome, mas com alguma lábia do pároco e a influência de um amigo político do mesmo, Bicho foi atendido. Adiantou? Não, não creiam...

Tudo passou.


Não sei porque conto isto a vocês, mas Bicho foi uma imagem forte da minha infância. Forte o suficiente para eu não seguir os mesmos passos. Não sei se deveria atribuir tanta importância, mas foi o que fiz. Por outro lado, se vocês se sentirem muito incomodados e considerarem que foi perda de tempo ler estas linhas tão obscuras – talvez ninguém desejaria saber, não é verdade? – é melhor deixar estes fatos enterrados, como Bicho está enterrado em algum lugar da mata de onde veio.

E isto é tudo, meus amigos. Claro, logo logo haverá mais a dizer. Beijos e abraços!

NA MINHA VITROLA: BRITISH SEA POWER - The Land Beyond.

3 comentários:

Anônimo disse...

_Enterrado esta em cada um ...

*problema eh qual de nos quer conhecer e viver o que este bicho nos pede a viver.

Otimo Conto .
Abração.!.

Anônimo disse...

Lindo conto.

A luta é essa mesmo.... "Não há garantias contra a decadência e a mediocridade em qualquer parte".

Quem de nós não tem medo de branquear os cabelos e ver que a vida se foi, aquém dos sonhos?

Quem de nós não tem medo ser o Bicho que se conforma com qualquer uma coisa, uma farinha um nada..até enlouquecer dando urros terríveis???

Beijos da gaivota.
Em tempo, pode deixar seu alô no meu blog, já está lá o meu relato da viagem ao Peru.

Rafael Mafra disse...

Hey, hermano!
Muito bom te ler novamente! Gostei bastante do "Bicho" e do "Gestalt".
Quando não estamos por ali, parados olhando o vazio em nossos sonhos cinzas, estamos a praguejar. Somente assim pra ser audacioso o bastante.

Quando quiser passa lá "em casa" que tem algumas "Indeterminações" e um pouco de "Silêncio? Perfeito!". Este último, por sinal, fala alguma coisa do olhar vago!

Abraços! Até logo!