segunda-feira, 2 de abril de 2007

Nos 60's os comunistas comiam criancinhas, hoje os rabinos roubam gravatas e amanhã vai faltar água... ou alguma coisa assim.

Porque nada permanece no lugar nestes dias e tudo o que ensinaram a vocês na infância está sendo posto à prova.



O Furto
Milly Lacombe

Quando eu tinha uns seis, sete anos, lembro que fui com minha mãe à farmácia perto de casa. Enquanto ela comprava remédios, eu, desassistida, achei que seria divertido furtar coisinhas que estavam ao alcance de minhas pequenas mãos. Peguei algumas canetas, que estavam ali sabe-se lá por que, chicletes e coloquei o material tungado em meus bolsinhos. Ao entrarmos no carro, tirei o saldo do bolso e joguei tudo sobre o painel (anos 70, quando crianças ainda andavam no banco da frente). Orgulhosa da estrepulia, mostrei tudo à minha mãe. Ela, sempre muito esperta e capaz de voltar para casa com boa parte do couvert do restaurante na bolsa, reagiu de forma estranha. Nem riu, nem passou a mão em minha cabeça em sinal de aprovação. Inclinou-se em minha direção, abriu a porta do carro e mandou que eu saísse: “Entre na farmácia novamente, devolva tudo isso e peça desculpas pelo furto”. As palavras soaram como uma sentença de morte. Não havia, em meu minúsculo mundo, nenhuma chance de me submeter a tamanho constrangimento. Comecei imediatamente a chorar e a implorar que ela me deixasse ficar com o saldo porque eu jamais faria novamente. Como ela parecia muito resistente, tentei negociar que então entrasse ela na farmácia. Eu jurava por tudo que não repetiria o gesto. Mas a matriarca se mostrava decidida. Nem fazia menção de colocar as mãos na chave e dar a partida. “Não sairemos daqui enquanto você não entrar na farmácia e devolver o que furtou”. Depois de uma eternidade, minha pessoinha de seis anos, moralmente em farrapos, voltou sozinha à farmácia, chamou o moço e pediu, gaguejante, desculpas pelo furto. De volta ao carro, eu já não era mais a criança que um dia fui. Naquele dia, aprendi um pouco sobre certo e errado.

Eu não acredito em Deus - pelo menos não nesse Deus punitivo e intervencionista vendido pelos cristãos - não rezo, não vou à Igreja, não faço o sinal da cruz, não leio a Bíblia (embora, para fins de diversão, visite regularmente o Gênese), não peço favores ao divino, nem espero dele recompensas. Ainda assim, quase que por milagre, consigo distinguir certo e errado.

Consigo, por exemplo, entender que o tal Rabino pop e ecumênico errou ao surrupiar gravatas de grife de uma loja em Miami. Consigo entender que todas as desculpas agora dadas para justificar o bestial erro fazem parte desse manto de hipocrisia que nos cega. Fosse o tal Rabino um negro, uma dona-de-casa, ou apenas um anônimo filho de Deus a meter a mão nessas mercadorias, não haveria bondade humana interessada em desculpá-lo. Mas, como se trata de um homem religioso, alguma explicação extra-terrena deve haver para que ele tenha, em surto, cometido o ato. A mulher que rouba leite no supermercado para alimentar o filho é presa em flagrante, jogada numa cela e ignorada por todos. O Rabino que rouba gravatas de marca em Miami para se vestir melhor está por aí culpando forças ocultas e superdosagens de antidepressivos pelo equívoco, enquanto continua paparicado. A mulher do supermercado não estudou, não teve oportunidades na vida e, orientada pelo mais natural estado de necessidade, comete o furto. O homem culto, representante de Deus na Terra, mesmo sem a atenuante do estado de necessidade, consegue convencer a opinião pública que fez aquilo porque estava dopado. E a opinião pública, eternamente complacente com nossos sacerdotes, por pior que seja o crime, finge acreditar. Assim, o jogo da hipocrisia é perpetuado.

Fica tudo certo, o furto do Rabino será esquecido e ele, rapidamente, falará com propriedade, diretamente de seu altar, sobre o que é certo e o que é errado. Não reconhecerá que foi ele, e apenas ele, que cometeu o delito, e ficará escondido atrás desse ser estranho, movido por superdosagens de antidepressivos, capaz de cometer erros boçais.

Enquanto o rabino passa pela vida protegido e desculpado por sua suposta divindade, a mulher que furta leite no supermercado está presa, ignorada pelos representantes de Deus na terra, mais preocupados em incrementar seus sofisticados guarda-roupas. Se houver mesmo essa tal justiça divina, num lugar longe daqui, todos os papéis serão invertidos. E, aí sim, a brincadeira vai ficar divertida.

E já que é assim mesmo, o inacreditável tomando o lugar do corriqueiro, tenho um bom pretexto pra postar aqui uma poesia do irlandês Yeats. (Não, eu não preciso de pretextos, de verdade...)

A propósito, espero que o inglês de vocês esteja um pouco além do verb to be, porque poesia, amigos, não se traduz... mas esta traduz nossos dias desde antes de eles chegarem.

The Second Coming
William Butler Yeats

Turning and turning in the widening gyre
The falcon cannot hear the falconer;
Things fall apart; the centre cannot hold;
Mere anarchy is loosed upon the world,
The blood-dimmed tide is loosed, and everywhere
The ceremony of innocence is drowned;
The best lack all conviction, while the worst
Are full of passionate intensity.

Surely some revelation is at hand;
Surely the Second Coming is at hand.
The Second Coming! Hardly are those words out
When a vast image out of Spiritus Mundi
Troubles my sight: somewhere in sands of the desert
A shape with lion body and the head of a man,
A gaze blank and pitiless as the sun,
Is moving its slow thighs, while all about it
Reel shadows of the indignant desert birds.
The darkness drops again; but now I know
That twenty centuries of stony sleep
Were vexed to nightmare by a rocking cradle,
And what rough beast, its hour come round at last,
Slouches towards Bethlehem to be born?

Beijos e abraços, pessoal!

NA MINHA VITROLA: THE DECEMBERISTS - The Crane Wife, Part 3.

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