quarta-feira, 27 de fevereiro de 2008

Pietra Regina

Um dia, conversando com uma amiga, ao descobrir sobre seu nome composto, eu fiz algum comentário, uma brincadeira, que deu origem a um trecho desta breve história. Então desenvolvi: mil acréscimos, alguns cortes... e ali estava a personagem - por sinal, e ainda bem, muito diferente da minha amiga. Lá vai:


Pietra Regina

Pietra Regina não sabe, mas nasceu numa novela mexicana. Ou coisa que o valha.

Regina é a adulta bem resolvida, equilibrada, boas aparências, tudo isso que todos sabem muito bem. Nunca dá ponto sem nó e outro dia mesmo eu a vi dissertar brilhantemente com suas colegas de trabalho, durante o almoço, sobre direitos humanos.


Na verdade, as moças estavam achando tudo um saco, porque elas queriam mesmo falar dos gostosões de final de semana. Era segunda e quase havia um acordo pra que não falassem sobre direitos humanos e coisas do gênero. Para Regina seus finais de semana eram compras no shopping e alguma ajeitada no cabelo ou nas unhas - era vaidosa. Mas nada que importasse, de fato, àquelas outras.

Avançava no assunto e quase tirava a fome de quem tinha. Ok, sem traumas, que se houvesse ela passava por cima. O essencial era a seriedade e o que de fato era relevante. Que determinada e séria a nossa Regina...

No escritório, era importante. As coisas iam relativamente bem, porque a respeitavam. Tudo saía dentro dos conformes. Toda coisa com potencial de distração tem de ser varrida para baixo do tapete ou quem não produzia bem... ah, primeiro era uma conversa. Mas não havia a segunda.


Em casa, ordem. Mas como, se vivia sozinha? Havia a empregada, claro. E havia um tempo mínimo para a elaboração de uma lista de tudo que deveria ser feito. Austera, Regina não permitia más interpretações, tampouco maus serviços. Terezinha sabia bem e era esperta. Para o bem de ambas! Quase uma relação modelar.

Era bem paga, a Terezinha, que na verdade era Maria Tereza. Só falava mal da patroa em casa, com o bofe que não queria ouvir nada, a não ser os gemidos dela no leito. Isso faltava à nossa protagonista: o príncipe encantado.


Chegando em casa, depois de um dia exaustivo, mas com tudo no lugar, Regina se despia correndo. Para uma ducha, muito rápida, muito sem graça ou prazer. Era apenas a rotina - depois jantar e as telenovelas. Juraria poder adivinhar o destino de cada personagem.

Às vezes, pegava-se angustiada. Porque era moça sozinha. A despeito da procedência telenovelística, ainda por cima, mexicana, a família era distante: algum ponto do Maranhão que mal se percebia no mapa. Valente, ela veio com um irmão pra Cidade Cinza, mas esse irmão era todo torto, morrera torto. Ela que não ia seguir o mesmo exemplo. A vida endurece as pessoas.

Sorte que houve quem a amparasse, ainda tão jovem e assim sozinha. Era um casal de vizinhos, uns velhotes. Um dia, já mulher realizada, Regina percebeu que só havia um meio de dar a eles uma velhice digna: um bom asilo. Eles não se importaram, mas definharam em tempo recorde. Não era a solução tão perfeita como parecia. Quando o velho ficou doente, Regina cuidou para que ele tivesse o melhor tratamento. Não deu. A velha morreu de desgosto algum tempo depois. O que podia fazer? Era a vida. Mas se você deixa, ela te atropela. Não dá pra parar, não.


Regina era determinada, inteligente, ainda que a falta de uma boa alimentação na infância a tornasse um pouco suscetível a não perceber detalhes sobre algumas coisas. Ética, por exemplo. Em partes, uma funcionária assim é tudo o que um patrão precisa. E assim, ela foi galgando posições, até se tornar gerente-de-sabe-se-lá-o-quê.


Mas à noite, frente à TV ela se desligava.
Então, sem perceber, chorava, porque tudo aquilo era muito vazio, muito descabido de sentido. Sua perfeição de plástico. Era quase bonita, a danada, mas nenhum homem olhava pra ela. Tinha cara de poucos amigos. Ou pior... de namorada que arranca pedaço - e daqueles vitais. É, esses homens... nenhum presta mesmo! Essas bobas se deixam levar fácil, mas eu é que não levam no bico!

Bem no fundo, ela sabia, era duro ser só. E chorava sem lágrimas.
Claro, já não era ela. Dentro havia outra pessoa, um ser tão pequenininho... na verdade, uma menina, a Pietra. A menina que nunca cresceu, que ficava guardada ali dentro, apenas esperando a oportunidade de emergir.

Regina esquecera, fazia questão de omitir de si mesma qualquer detalhe sobre o passado e sufocava a pobre... imagina, pra que dar-se ao luxo de voltar a ser criança? Não tinha tempo a perder com canto de pássaros, aroma de flores, "essas bobagens de livrecos românticos".

Mas eu a conhecia e a ouvi. Falava de direitos humanos como ninguém. Regina era um ideal, um personagem de telenovela. Pietra, uma poesia abortada, que teria sido realmente bela, se...

Pietra Regina era uma rocha erodida. Um dia passa, sempre passa.

Taí, conto novo pra marcar o retorno ao blog, que poderia ter acontecido dois dias antes, mas não sem uma idéia que eu considerasse relativamente razoável. Acho que é isso. Espero que curtam!

Beijos e abraços, pessoal!

NA MINHA VITROLA: NAÇÃO ZUMBI - No Olimpo > ELVIS COSTELLO - Still > INDOCHINE - Trois Nuits par Semaine > AU REVOIR SIMONE - Don't See the Sorrow > BRUCE SPRINGSTEEN - Your Own Worst Enemy.

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