quinta-feira, 6 de março de 2008

O conto do pioneiro

A seca de março fecha o verão, que não é fechado porque o calor prossegue. Apenas a data virá e determinará: outono. Antes disso, abro o março deste espaço com um conto, outro. Vamos lá:


O Conto do Pioneiro

Difícil crer.

Então eu folheava o álbum de fotografias. Folhas amarelas e registros de um tempo que já não existe, agora menos ainda, quando o passado começa a se desmaterializar de forma que não se pode controlar. O máximo que se pode tentar é compreender. A vida é assim.


A velha turma, nas fotos, ainda fazia algazarra, mas era só ali. Detenho-me no semblante daquele amigo. Saudade. É o que mais acontece. Entre tantos, havia este, o que era o mais admirável.


O que unia todos, meio sem se dar conta, na hora do intervalo, para o futebol com tampinha de garrafa. Depois, eram as bolas de meia e, finalmente, aquelas bolas de bazar. A evolução final veio quando cabulávamos aula na 8ª Série, para jogar com os moleques mais velhos no campinho que fica no caminho da escola para a casa. Bola de capotão. Tudo temperado pelo suor, os hurras de alegria e os palavrões de frustração. Às vezes, uma briga. Sempre passava.

O que negociava melhor os prazos dos trabalhos com os professores. Às vezes ele conseguia, muito mais que qualquer outro. O papo rolava fácil com qualquer um, até com os bandidinhos da rua debaixo. Nossas mães, horrorizadas, pediam para evitarmos.


O culpado da primeira tosse por causa do primeiro cigarro. A primeira brisa também. Éramos bons garotos, mas o proibido nos atraía. E quando não foi assim, com qualquer um, até os bons garotos?

O que ganhava as meninas e nos dava dicas meio furadas, mas que às vezes funcionavam. Uma vez fiquei puto: a única briga dos amigos. Gabi era a razão. Tão bonita, com seus cabelos que ela insistia manter em trança. E um corpo se formava debaixo do uniforme de escola. Eu captei. Ele também - e era mais esperto. Merda, eu vi quando foi. Justamente eu tinha que ver. Mas Gabi passou também.

O que primeiro comprou um instrumento. Depois formamos uma banda. Foi legal enquanto quisemos que fosse assim. Certo era que éramos ruins demais, tanto quanto a maioria das bandas de adolescentes que se formou na nossa cidade. Um bom pretexto pra outras meninas chegarem perto. Daí Gabi passou mesmo. Da música, só ficou o violão de Zeca, que continuou. Virou profisional e toca nos barzinhos da cidade até hoje. Eu mesmo já o vi duas vezes. Aprendeu, o danado!

A despeito do fracasso com música, Nelsinho era o mais feliz, o mais entusiasmado, em suma. Desse jeito, quase sem querer e sem imposição. Aceitávamos e era assim, até que o tempo... bom, há o tempo que engole tudo. As algazarras já não são as mesmas e cada um tem seu próprio caminho a trilhar, não é?


Natural e incontrolável, foi o primeiro a ir embora. Outra arte era o que ele tinha, pintava bem. Lembro quando uma dona falou que ele tinha talento, que podia tentar a sorte noutra terra. E, diabos, ele foi. Outra terra, uma bota.


Todos queriam correr mundo, fiquei triste porque partia um amigo, um irmão de alma. Mas feliz porque ele iria conseguir o que queria, não havia dúvida quanto a isso. Pouco soube depois, mas supunha que deu certo por lá. Afinal, esqueceu. Nós por aqui, também, quase, mas nunca de verdade. Estranho é que eu, que era amigo pra valer, de frequentar casa, parei de ir lá. O que nos leva a não saber o que se passa quando um amigo está longe, em algumas ocasiões, é um mistério que não consigo definir.

Uma vez, o Jota, irmão dele, quem disse, tinha se casado, tinha uma filha. E nós, os outros, ainda tratando da diversão, um pouco, sozinhos ou acompanhados pelas moçoilas provisórias - uma ou outra, a definitiva. Ao mesmo tempo, tínhamos de decidir o que fazer da vida. Escolher profissão, essas coisas. Nunca fui visitá-lo. Nem os amigos com que ainda tenho contato o fizeram, exceto o Paulo.


Professores se aposentaram; dois deles, um era bem velhinho naqueles tempos, já não existem mais. O campinho está no mesmo lugar, mas eu já não vou à escola, a não ser nos dias de reunião de pais (sim, eu também) - mas é outra escola, que cabeça a minha! E, claro, mudei de bairro e de cidade. Ah, a capital...

Perdemo-nos, quase todos. Vez por outra eu volto pra ver os velhos e, lógico, os amigos velhos também. É por eles que sei do pessoal da turma antiga. Quase duas décadas passadas, ninguém sabia novidades de nosso líder e pioneiro em tantas aventuras, tantos feitos. Mas uma notícia, nesta visita de agora. _ _ _ _

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Perplexidade.

Agora está muito mais longe e inacessível que todos nós. Definitivamente. Acidente de trânsito, disseram. Paulo, o mais próximo da família, contou. Segredo, segredo. Atirara-se na frente de um carro, em Gênova, o Nelsinho.

E, assim, foi o primeiro de todos, mais uma vez, pela última vez. Pensei no que podia ter dado errado, o que levara o outrora camarada tão positivo a tal resolução, que desespero se apoderara.

Nenhuma saída, não para ele. Não para mim. Amizade que não se resgata. E quem sabe não teria sido da mesma forma? Nada que eu pudesse fazer, nunca mais, cacete!

Apenas folhear álbuns repletos de fotos amareladas.

Fim de história pra esse post, hoje, pessoal. Em breve, claro, volto com mais. Beijos e abraços!

NA MINHA VITROLA: ELLIOTT SMITH - Miss Misery > Everybody Cares, Everybody Understands > DEPECHE MODE - Barrel of a Gun > CHICO BUARQUE - O Filho que Eu Quero Ter > ELVIS COSTELLO - Alison.

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