quarta-feira, 21 de janeiro de 2009

Viver a vida

Ah, o cinema, o cinema... poderia falar mil coisas sobre este filme, Viver a Vida, do Godard. Mas preferiria fazer isto no DDF - o que não é uma promessa. Por isso, "apenas" mostro-lhes um diálogo excelente entre a jovem prostituta e o senhor que ela encontra num bar.


Ela Se incomoda se eu olhar? Você tem o olhar de entediado.

Ele Não estou.

Ela O que está fazendo?

Ele Estou lendo.

Ela Você me paga uma bebida?

Ele Se você quiser.

Ela Você vem bastante aqui?

Ele Não, às vezes. Hoje, por sorte.

Ela Por que você lê?

Ele É meu trabalho.

Ela É engraçado... de repente eu não sei o que dizer; isso acontece muito comigo. Eu sei o que quero dizer. Eu reflito sobre o que quero dizer mas, no momento de dizer, eu não consigo.

Ele Sim, claro!

uma pausa

Ele Você leu os Três Mosqueteiros?

Ela Eu vi o filme. Por quê?

Ele Porque nele, Porthos - isso se passa, na verdade, no Vinte Anos Depois - Porthos, o grande, o forte, um pouco burro, ele nunca pensou em sua vida, compreende? Então, uma vez ele tem de implantar uma bomba numa adega, para explodi-la. Ele o faz. Ele coloca a bomba, acende-a e sai correndo, naturalmente. Mas, de golpe, ele começa a pensar. Ele pensa no quê? Ele se pergunta como pode colocar um pé após o outro. Você já deve ter pensado sobre isso, também. E então ele para de correr. Ele não pode mais, não pode avançar. Tudo explode, a adega cai sobre ele. Ele a segura com seus ombros, ele é forte. Mas depois de um dia, ou dois ele cede... e morre. A primeira vez que ele pensa, ele morre.

Ela Por que me conta essa história?

Ele Sem razão, só por falar.

Ela E por que a gente precisa sempre falar? Muitas vezes devíamos nos calar, viver em silêncio. Quanto mais falamos, menos as palavras significam.

Ele Talvez... mas como se pode?

Ela Eu não sei.

Ele Eu acho que não podemos viver sem falar.

Ela Então é isso, eu gostaria de viver sem falar.

Ele Sim, isso seria bom, não? É como se não amássemos mais. Mas não é possível, nunca vai ser.

Ela Mas por quê? As palavras deviam exprimir exatamente o que queremos dizer... elas nos traem?

Ele Mas nós as traímos também. Nós devíamos poder dizer o que queremos, como já foi feito com a boa escrita. É mesmo extraordinário que um homem como Platão a gente pode ainda compreender - a gente compreende. Ainda assim, ele escreve em Grego, há 2500 anos. Ninguém realmente sabe a língua daquela época, ao menos exatamente. Mas ainda sim passa alguma coisa, então nós devemos poder nos expressar. E nós precisamos.

Ela E por que devemos nos exprimir? Para se compreender?

Ele Nós precisamos pensar e, para pensar, é preciso falar. Não há outro jeito de pensar. E, para comunicar, deve-se falar. É a vida.

Ela Sim, mas, ao mesmo tempo, é muito difícil. Eu acho que a vida deveria ser fácil.

uma pausa

Ela Você sabe, a sua história dos Três Mosqueteiros pode ser muito boa, mas é terrível.

Ele Sim, mas é uma indicação. Eu acredito que aprendemos a falar bem quando renunciamos à vida por algum tempo. É quase... o preço.

Ela Então falar é mortal?

Ele Falar é quase uma ressureição em relação à vida. Quando falamos é uma outra vida de quando não falamos. Então, para viver falando, deve-se passar pela morte da vida sem falar. Eu talvez não esteja sendo claro, mas há uma certa regra ascética que lhe impede de falar bem até olharmos a vida com desapego.

Ela Mas não se pode viver a vida com... eu não sei...

Ele ... com desapego. Sim, mas nós balanceamos, é por isso que devemos passar do silêncio às palavras. Nós balançamos entre os dois porque é o movimento da vida... da vida cotidiana nós nos elevamos a uma vida que chamamos de superior. É a vida do pensamento. Mas essa vida pressupõe a morte da vida cotidiana, a vida demais elementar.

Ela Mas então pensar e falar se parecem?

Ele Eu acredito. Platão o disse; é uma idéia antiga. Nós não podemos distinguir do pensamento o que é o pensamento e as palavras que o exprimem. Analisando a consciência, você não consegue separar o momento de pensar das palavras.

Ela Falando, então, a gente se arrisca a mentir?

Ele Sim, porque mentiras são também parte de nossa busca. Há pouca diferença entre erro e mentira. Não quero dizer mentiras comuns, como "eu prometo ir amanhã", mas não vou porque não queria. Entende? Esses são truques. Mas uma mentira sutil é pouco distante de um erro. A gente procura, e não consegue achar as palavras certas. É por isso que você não conseguia saber o que ia dizer. Você tinha medo de não achar a palavra certa. E eu acho que é isso.

Ela Sim, mas como ter certeza de ter encontrado a palavra certa?

Ele Deve-se trabalhar. É necessário um esforço. Deve-se falar num modo que é certo, não machuque. Diga o que há para ser dito, faça o que tem de fazer... sem machucar, nem ferir.

Ela Sim, um deve tentar ser de boa fé. Uma vez alguém me disse: "A verdade está em tudo, mesmo no erro".

Ele Isso é verdade. Isso não foi visto na França no século XVII. Eles achavam que podiam evitar o erro e, ainda mais que isso, que podia-se viver na verdade diretamente. Creio que não seja possível. Por isso há Kant, Hegel, a filosofia alemã: para nos conduzir à vida e nos fazer ver que devemos passar pelo erro para chegar à verdade.

Ela O que você pensa do amor?

Ele O copro tinha de chegar nisto. Leibnitz introduziu o contingente. Verdades contingentes e verdades necessárias fazem a vida cotidiana. Aos poucos chegamos na filosofia alemã, onde pensamos na vida, com os erros da vida, com as servitudes da vida. E deve-se lidar com isso, é verdade.

Ela O amor não deve ser a única verdade?

Ele Mas, para isso, o amor deveria ser sempre verdadeiro. Você conhece alguem que sabe de cara quem ele ama? Não é verdade. Quando você tem vinte anos não sabe o que ama. Você sabe migalhas, se agarra só à sua experiência. Você diz "eu amo isso", é sempre uma mistura. Mas para ser constituído inteiramente daquilo que se ama, é preciso a maturidade. Isso significa buscar. E é essa a verdade da vida. É por isso que o amor é uma solução, na condição que seja verdadeiro.

Ei, não há muito o que eu queira dizer depois disso. O diálogo diz tudo.

Beijos e abraços, pessoal!

NA MINHA VITROLA: MICHEL LEGRAND - Vivre Sa Vie.

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