sábado, 17 de maio de 2008

Para Zelia e Jorge

Zelia, você faz falta, assim como o Jorge!

Ou não... porque eternos, vocês já são!

Num casarão antigo, situado na Alameda Santos número 8, nasci, cresci e passei parte de minha adolescência.

Ernesto Gattai, meu pai, alugara a casa por volta de 1910, casa espaçosa, porém desprovida de conforto. Teve muita sorte de encontrá-la, era exatamente o que procurava: residência ampla para a família em crescimento e, o mais importante, o fundamental, o que sobretudo lhe convinha era o enorme barracão ao lado, uma velha cocheira, ligada à casa, com entrada para duas ruas: Alameda Santos e Rua da Consolação. Ali instalaria sua primeira oficina mecânica. Impossível melhor localização!

Para quem vem do centro da cidade, a Alameda Santos é a primeira rua paralela à Avenida Paulista, onde residiam, na época, os ricaços, os graúdos, na maioria novos-ricos.

Da Praça Olavo Bilac até o Largo do Paraíso, era aquele desparrame de ostentação! Palacetes rodeados de parques e jardins, construídos, em geral, de acordo com a nacionalidade do proprietário: os de estilo mourisco, em sua maioria, pertenciam a árabes, claro! Os de varandas de altas colunas, que imitavam os "palázzos" romanos antigos, denunciavam — logicamente — moradores italianos. Não era, pois, difícil, pela fachada da casa, identificar a nacionalidade do dono.

O proprietário do imóvel que meu pai alugou era um velho italiano, do Sul da Itália, Rocco Andretta, conhecido por seu Roque e ainda, para os mais íntimos, por tzi Ró (tio Roque). Dono de uma frota de carroças e burros para transportes em geral, fora intimado pela Prefeitura a retirar seus animais dali; aquele bairro tornava-se elegante, já não comportava cocheiras e moscas. O velho Rocco fizera imposições ao candidato: reforma e limpeza do barracão, pinturas e consertos da casa por conta do inquilino.

Dona Angelina, minha mãe, assustou-se: gastariam muito dinheiro, um verdadeiro absurdo! Onde já se vira uma coisa daquelas? Velho explorador! Por que o marido não comprava um terreno em vez de gastar as magras economias em reformas de casa alheia? E o aluguel? Uma exorbitância! Como arranjar tanto dinheiro todos os meses? Onde? Como? Mas ela sabia que não adiantava discutir com o marido. Considerava-o teimoso e atrevido.

O vocabulário de dona Angelina era reduzido — tanto em português como em italiano, sua língua natal —, não sabia expressar-se corretamente; por isso deixava de empregar, muitas vezes, a palavra justa, adequada para cada situação. Usava o termo "atrevimento" para tudo: coragem, audácia, heroísmo, destemor, obstinação, irresponsabilidade e' atrevimento mesmo. Somente conhecendo-a bem se poderia interpretar seu pensamento, saber de sua intenção, se elogiava ou ofendia. No caso da reforma em casa alheia, não havia a menor dúvida, ela queria mesmo desabafar, chamar o marido de irresponsável: "...um atrevido é o que ele é!" Disse e repetiu.

Trecho do livro Anarquistas, Graças a Deus, de Zelia Gattai, lançado em 1979.

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